Rudá Ricci mostra como o despojamento de José Mujica uniu liberdade, humanismo e coragem política num legado inspirador.
Por Rudá Ricci*
Comecei a ler comentários de analistas europeus sobre o significado da morte de Mujica. Um analista em particular atraiu minha atenção: Daniel Oliveira. Daniel é colunista do jornal português Expresso e um famoso blogueiro que assessorou o Bloco de Esquerda, uma espécie de PSOL de Portugal.
No seu comentário sobre Mujica, logo no início faz uma observação que me laçou imediatamente:
“E tenho muito mais inveja da liberdade conquistada pelo despojamento do que da lamentável solidão e do risível exibicionismo de Musk. A redução da política à tecnocracia destruiu a sua função inspiradora e profética, sem a qual é gestão.”
Nesses dias, Mujica foi quase uma unanimidade, com exceção dos sempre chatos e mal-amados bolsonaristas, uníssonos em seus comentários sem alma ou cérebro. A quase unanimidade dizia respeito à aura de outsider que Mujica construiu — um perfil radicalmente contra a institucionalidade política, mas que claudicava na primeira disputa eleitoral e desgastava-se a cada passo até restar apenas a raiva por não alcançar seu objetivo.
Mujica foi retratado alguns dias após sua morte com o manto que Daniel Oliveira descreveu e que alimentava sua inveja: o despojamento. Esse predicado peculiar impacta o status quo, pois sugere um nirvana inatingível que nos absolve de abdicar de tudo. Em resumo, se fosse um mandamento, estávamos perdidos — há diferença entre não cobiçar e desejar que o outro não alcance o que você não tem.
O despojamento deu a Mujica uma liberdade de pensamento desconcertante. Estamos acostumados a ver líderes se vestindo como se saíssem de uma festa, jogando com jornalistas e realizando movimentos de gato-e-rato com a oposição. Já os políticos bem-sucedidos vencem sempre ou são hábeis o bastante para que, ao perder, pareçam ter vencido.
São bons administradores, muitas vezes cáusticos e desumanos na política fiscal, ou carismáticos ao ponto de enlouquecer as massas, ou ainda inflexíveis ou raposas do frasismo. Mujica não era nada disso. Seu legado aponta para um ideal quase contraditório: um político inatingível e humanista.
A grande imprensa sublinhava que foi guerrilheiro implacável, preso, torturado e mantido em solitária durante anos. O que era difícil de explicar é a linha que liga esse passado à candura e ao humanismo que emergiram após o fim da ditadura uruguaia. A resposta vinha dele mesmo, ao analisar o papel dos militantes: não são perfeitos, mas entregam a alma por um punhado de sonhos — a chave que conecta seu passado guerrilheiro ao presente.
O despojamento franciscano do líder uruguaio também lhe deu alforria para afirmar que Maduro é um ditador, gerando desconforto em grupos progressistas mais apegados à polarização do que aos princípios. E lhe deu condições morais para defender a descriminalização da maconha, o aborto legalizado e o casamento homoafetivo — ações impensáveis para um governante progressista brasileiro atual, onde líderes se acomodam ao pensamento das massas para conquistar likes, em vez de liderar.
Mujica era um outsider dentro do espectro outsider: um ponto fora da curva, um grilo falante que mostrava que ser de esquerda vai muito além de ganhar eleições — significa abraçar princípios que, não raro, tornam você um outsider.
*Rudá Ricci é sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em Ciências Sociais. Presidente do Instituto Cultiva. Ex-consultor da ONU. Coordenador do Pacto Educativo Global no Brasil.
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