Instituto Cultiva

A Política e a Sociedade: Uma Proposta de Utopia em Debate

O Instituto Cultiva, por meio do podcast “Rudá Analisa”, tem provocado reflexões importantes sobre o distanciamento da política da sociedade brasileira e os desafios da participação popular. No episódio “A política se apartou da sociedade brasileira?”, o sociólogo Rudá Ricci aborda a crescente individualização e a ausência de uma cultura política coletiva que se veja como ator, e não apenas beneficiário, das políticas públicas.

Nesse contexto, o biólogo João Pedro Trevisan, instigado pela discussão, apresenta em seu artigo “Salário solar: Uma proposta de utopia” uma perspectiva complementar e provocadora. Trevisan nos convida a sonhar com uma sociedade onde “todos caibam, pelo máximo de tempo possível”, buscando um acordo de paz entre as ciências naturais e humanas e questionando a lógica do “darwinismo social”. Leia no artigo abaixo:

Salário solar Uma proposta de utopia

João Pedro Trevisan*

Esse texto é para os sonhadores. Hoje em dia parece que todo sonho é chato, ou, pior ainda, utópico. Mas é curioso esse nosso tempo. Estamos discutindo como vamos reduzir a quantidade de gás-carbônico que queimamos, a fim de evitar o aumento da temperatura da Terra. Antigamente, para diminuir a temperatura da Terra, era só rezando para os Deuses. E fica ainda mais interessante, ao mesmo tempo que tem gente querendo controlar o clima, tem gente dizendo que é impossível controlar a economia. Nessa era de contradições, quem sonha alto, acorda tarde.

Mas não sou o único propondo utopias, existem outras por aí. Nesses sonhos as pessoas buscam pela prosperidade infinita, através do máximo esforço individual. Uma proposta um tanto distópica. Os recicladores, por exemplo, dormem em carroças, seu instrumento de trabalho, e só param quando não conseguem mais reciclar. Mesmo assim são os trabalhadores mais mal pagos. Outro milionário seria o caminhoneiro, que dorme no caminhão no meio dos trajetos. A sociedade não deixaria um funcionário público dormir no instrumento de trabalho, mas duvido que os caminhoneiros queiram trabalhar para o estado. E assim seguem os nossos trabalhadores, livres e sem segurança, cada vez mais inseguros.

 Outra coisa proibida é a generalização. É preciso ser absolutamente especialista nos temas para poder opinar sobre eles. E assim nos tornamos tão especializados que esquecemos como conversar com outras áreas, talvez por isso a sociedade esteja tão individualista. Portanto, o objetivo aqui, de maneira geral, é propor uma sociedade em que todos caibam, pelo máximo de tempo possível. Uma sociedade sustentável para a maioria da espécie humana.

Para isso gostaria de propor um acordo de paz entre as ciências naturais e as humanas. Queria fazer as pazes especialmente com a ideia de “Darwinismo social” que não é nem Darwinismo, nem social. Ao mesmo tempo é preciso compreender a natureza humana da natureza, que nem sempre é tão exata como gostaríamos. A natureza consegue ser exata e humana ao mesmo tempo, mole e dura, como um pudim de passas, o doce mais famoso que ninguém nunca comeu, mas esse é outro utópico.

Talvez a utopia tenha morrido porque temos que lidar com um problema extremamente impopular: algumas pessoas terão que mudar de padrão de vida para que outras não morram de calor e não existe nada mais chato e assustador que mudar de padrão de vida. A gente sempre soube que esse dia ia chegar, que não dava para todo mundo ter o seu Golden Retriever, só não sabíamos que chegaria tão rápido.

Desde que eu estava na infância as pessoas me diziam que “se todo mundo vivesse como um americano médio, seriam necessárias quatro Terras”. O que nunca foi dito é que todo mundo se estapearia por aí tentando chegar, cada vez mais perto, do sonho americano. Mas afinal, qual especialista devemos procurar para entender os limites do consumo? Os limites do desejo? Os limites da liberdade? Os limites dos recursos naturais? E com todas essas perguntas sobre limites, como é possível sonhar? Essa utopia, então, se baseia em coragem e talvez na frase mais ousada que já vi: “o futuro é ancestral”. Chegamos ao fim da história, acabou, precisamos voltar a um padrão de vida anterior. Começou a distopia do padrão de vida possível.

Mas o quão ancestral voltar? Talvez o segredo seja voltar à época em que cultuávamos o Deus Sol. Nessa época, fazíamos o plantio conforme as estações do ano, comíamos de acordo com a colheita e dormíamos quando o sol se punha. Seria essa vida chata demais? Será que ainda conseguimos rezar para um Deus que podemos ver e sentir? Um Deus que não é ser, é estado.

Escolhi o Deus Sol porque a energia da Terra vem quase toda de lá, se conseguíssemos nos entender com ele, poderíamos viver por mais tempo. Nessa utopia o dinheiro expressa perfeitamente a quantidade de energia necessária para realizar um trabalho, sabendo que essa energia veio do Sol. O salário seria como o açúcar que é usado para realizar trabalho ou armazenado para um trabalho futuro. Além disso, o açúcar é produzido pela fotossíntese, armazenando a energia do sol. Nessa utopia, portanto, o refrigerante seria proibido, é muito açúcar de uma vez, é possível que esse açúcar todo não consiga se transformar em trabalho e as pessoas acabem ficando bilionárias.

Alinhar o ganho pessoal à quantidade de energia liberada pelo Sol parece uma ideia impossível, mas desde quando trocar combustíveis fósseis por fontes renováveis é uma ideia possível? Os empregos verdes geralmente pagam menos que os poluidores e os produtos orgânicos geralmente são mais caros que os envenenados. Além disso, podemos pensar estrategicamente como indivíduos, como grupo, como país, mas não como espécie, as espécies não têm planejamento, isso seria “Socialismo Darwinal”. Mas, temos que admitir, os empregos verdes são mais sustentáveis e os alimentos orgânicos, mais saudáveis. Os empregos públicos são mais estáveis e, apesar de menos flexibilidade, permitem uma maior segurança, inclusive financeira. Os serviços ficam chatos e possíveis, mas pelo menos são de graça.

O pensamento coletivo nos aproxima da nossa ancestralidade, época que formávamos grupos, rezávamos para os astros e sonhávamos com um mundo melhor. E antes que os especialistas da biologia, economia, arqueologia, analogia e outras IAs por aí me critiquem, é melhor deixar claro. Salário não é a mesma coisa que açúcar e dinheiro não é igual a energia. Se fosse assim, o pagamento seria em banho de sol e se chamaria solário.

*João Pedro Trevisan é Graduado em Ciências biológicas pela FFCLRP-USP. Mestre em Ciências na área de Biologia Comparada, pela FFCLRP-USP. Doutorando em zoologia pelo IB/USP-SP.

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