Instituto Cultiva

Prefeito de São Paulo coloca em risco toda rede municipal de ensino

Por Rudá Ricci, Mariana Martins, Micaela Gluz, Carol Santos e Juliana Meato[1]

A cidade de São Paulo se tornou palco de ofensiva da extrema-direita sobre a educação. Esta é uma das áreas que mais canaliza as energias do extremismo brasileiro. O movimento Escola Sem Partido deixou claro que não considera que educação seja um tema público, ao contrário da instrução. Em sua visão reducionista e privatista, educação é tarefa da família e à escola caberia a mera instrução e preparação para o mercado de trabalho.

A Escola Sem Partido foi rejeitada pelo país e implodiu. No entanto, o extremismo brasileiro segue em marcha, tentando avançar sobre a educação pública.

O recente anúncio do prefeito Ricardo Nunes que resultou no afastamento de 25 diretores e no ranqueamento das escolas municipais com base em suas notas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), foi mais um capítulo dessa insistência que nada tem de técnico e muito de ideológico.

Com efeito, a lógica de classificar as instituições de ensino em grupos de “melhores” e “piores” tem suscitado uma reação direta por parte dos profissionais da educação, com relatos, provenientes do chão da escola, de que a medida pode desencadear um pedido em massa de transferências de trabalhadores lotados nas unidades consideradas de pior desempenho. O efeito imediato é um clima de pânico e insegurança, gerando um mal-estar generalizado na rede municipal de ensino.

O que se observa é que geralmente as escolas com os menores índices de desempenho estão situadas em áreas de maior vulnerabilidade social, onde os desafios para a aprendizagem são agravados por fatores externos ao ambiente escolar. São condições que escapam ao controle do gestor e que têm relação direta com desigualdades históricas, não com “má gestão”. De tal sorte que é de se perguntar qual a intenção de se sacar um índice de avaliação de proficiência que gera pânico entre profissionais da educação e não se relaciona com as práticas de gestão. A quem interessa este desarranjo de uma rede de ensino público?

A migração de profissionais e, consequentemente, a busca de famílias por escolas com notas superiores, tem o potencial de gerar um desequilíbrio estrutural: o inchaço de instituições classificadas como “melhores” e o esvaziamento das ditas “piores”. Esse movimento não apenas compromete a qualidade do ensino ao sobrecarregar algumas unidades, mas também intensifica a segregação social e aprofunda a desigualdade educacional, pois estigmatiza escolas e, por extensão, as comunidades que as cercam.

Além das implicações estruturais e constitucionais, essa política ameaça um dos pilares fundamentais do processo pedagógico: o vínculo afetivo entre educador e estudante. O possível êxodo de professores das escolas ranqueadas como “piores” impacta diretamente na quebra desse vínculo, gerando um ambiente de instabilidade e incerteza. Para os estudantes que já se encontram em um contexto estigmatizado e, muitas vezes, em áreas vulneráveis, a perda de figuras de referência e o constante rodízio de profissionais causam um sofrimento adicional, reforçando a sensação de desamparo e, lamentavelmente, a percepção de que estão fadados ao fracasso.

O SINESP, sindicato dos gestores das escolas municipais de São Paulo, decidiu estudar de perto o que a ação do prefeito Ricardo Nunes vem provocando na rede de ensino paulistana. O prefeito vem incansavelmente destruindo a autoestima dos diretores de escola que supostamente seriam responsáveis pelos baixos índices dos IDEBs – a avaliação externa questionável tecnicamente como medida de desempenho escolar – verificados nas suas unidades escolares.

Supostamente porque a prefeitura decidiu afastar gestores que não têm relação de fato com IDEB baixo, como já afirmado no início deste texto. O SINESP provou este fato. Também provou que escolas com baixo IDEB não tinham, até pouco tempo, índices ruins. Ao contrário. Há escolas que receberam prêmios por resultados pedagógicos logo antes da pandemia. Há inúmeras escolas com baixo IDEB agora que tiveram oscilações neste índice nas últimas avaliações. O mesmo ocorrendo com escolas com alto IDEB. Enfim, o critério dos resultados do IDEB não convencem e não possuem suporte técnico. Não é disso que se trata.

Então, do que se trata?

Gaslighting ou a tentativa de assédio moral da prefeitura de São Paulo

Há um fenômeno estudado pela psicologia que leva o nome de Gaslighting. Trata-se da manipulação psicológica que tem por objetivo que a vítima deste abuso duvide de sua própria sanidade e competência. Nos estudos clínicos são registrados casos em que crianças são submetidas a abusos e arbitrariedades a ponto de, na vida adulta, se sentirem culpadas e justificarem as críticas obsessivas a que foram submetidas. Um abuso de poder que vai minando a autoconfiança e a imagem de si.

No campo profissional, o gaslighting se aproxima do assédio moral constante, demolidor. Não raro, provoca a desmotivação do profissional, algo que se aproxima de sintomas próximos do pânico. A literatura especializada denomina como burnout, um esgotamento emocional profundo que leva à exaustão, o fogo existencial e profissional que se apaga.

Nas pesquisas que o SINESP vem promovendo na rede, emergiram inúmeros depoimentos de professores que afirmam que pedirão transferência de escola em função da perseguição do prefeito Ricardo Nunes às escolas que apresentam baixo IDEB. Não querem levar no seu currículo a pecha de terem trabalhado em escolas que são expostas publicamente como sinal de fracasso. O estigma imposto pela prefeitura opera como uma marca de exclusão e desqualificação profissional. Muitos desses profissionais possuem currículos de dedicação reconhecida por seus pares e por familiares dos alunos que atendem e atenderam. Muitos obtiveram resultados comprovadamente positivos ao longo de sua trajetória profissional. Inclusive, mesmo gestores com elevado IDEB manifestam interesse em se transferir para escolas de educação infantil, uma vez que avaliam que a pressão sobre eles será excessiva, podendo levar ao adoecimento mental dos profissionais. Essa situação, por sua vez, pode desencadear um trauma institucional na escola, além da ruptura de vínculos e impactos diretos no processo educacional.”

Na avaliação em curso sobre as variáveis que afetam o IDEB das escolas municipais paulistanas, não há qualquer indício que o baixo IDEB se relacione com o desempenho negativo do gestor escolar. As principais variáveis que afetam o índice são o número de alunos de cada unidade escolar e a vulnerabilidade social das famílias dos alunos. As escolas que atendem público mais vulnerável são as que se encontram com problemas estruturais como falta de professores. Ignorar isso é culpar a vítima e absolver o responsável pela formulação de políticas públicas inadequadas.

Se formos rigorosos, o erro pelo baixo IDEB é justamente a falta de estratégia educacional do governo municipal que não garante condições mínimas de trabalho dos educadores municipais em escolas com avaliações baixas e de sobrevivência digna das famílias dos alunos dessas escolas.

Mas, a questão a ser destacada é o mal que este ataque obsessivo da prefeitura aos gestores das escolas municipais vem causando na rede de ensino da capital paulista. A vergonha e o medo causados pelo gaslighting estão forjando um clima de desmontagem do ambiente de trabalho justamente nas escolas que deveriam ter incentivo para superação das dificuldades percebidas.

O cenário descrito insere-se na ânsia de políticos de direita em emplacar determinada racionalidade gerencial no setor educacional. Essa racionalidade implica a transposição de métodos e valores da administração privada para a gestão pública, priorizando a mensuração de resultados e a responsabilização por metas, muitas vezes desconsiderando as condições objetivas em que esses resultados são produzidos. Ao associar diretamente o desempenho no IDEB à competência dos diretores, sem considerar variáveis como porte da escola, vulnerabilidade do território, infraestrutura e disponibilidade de recursos, o governo municipal de São Paulo adota um modelo de accountability punitiva que não apenas falha em reconhecer a complexidade do trabalho educativo, mas também exerce efeitos psicológicos e organizacionais.

A pesquisa qualitativa conduzida pelo Instituto Cultiva como um dos subsídios para a direção do SINESP revela, a partir das entrevistas com diretores escolares, que esse processo de responsabilização tem consequências diretas sobre a autoestima profissional e o clima organizacional. Depoimento de um dos diretores da rede pública paulistana descreve a possibilidade de ser retirado de sua função como uma “violação de direitos” e expressa o desejo de “trabalhar em paz”, evidenciando que o clima de vigilância constante compromete a serenidade necessária para conduzir um projeto pedagógico de longo prazo. Essa sensação de insegurança é compatível com o que estudos técnicos descrevem como um dos gatilhos para o burnout, especialmente em profissões de alta responsabilidade social.

Ao mesmo tempo, há gestores que, diante desse cenário, optam por estratégias de adaptação e alinhamento à lógica gerencial, buscando manter indicadores elevados como forma de proteção institucional. Um outro gestor escolar paulistano revela que sua gestão é marcada pela centralização de decisões, pela seleção meritocrática de docentes e pelo acompanhamento sistemático de metas e indicadores. Embora obtenha resultados acima da média da rede, seu modelo minimiza a importância de fatores como vulnerabilidade social e limita a participação coletiva nos processos decisórios. Pior, ao se perceber impelido a assumir um papel de headhunter para atrair profissionais para sua escola acaba por desfazer a noção de rede pública e até mesmo do direito – que é sempre universal – aos alunos de todo o município paulistano, independente da região em que vivem. A racionalidade técnico-gerencial na educação leva a isso: ao priorizar o controle e a produtividade, restringe-se a construção de um projeto escolar verdadeiramente participativo e emancipador.

Em contraponto, outros diretores entrevistados demonstram resistência ativa a essa lógica, apostando em modelos de gestão mais próximos da ideia do gestor escolar como liderança que deve mobilizar a comunidade e promover a corresponsabilidade pelos processos educativos. A investigação em curso encontrou diversos gestores enraizados no território e comprometidos com vínculos comunitários que articulam redes de solidariedade, fomenta a participação das famílias e mantém práticas formativas contínuas com os professores, mesmo em contexto de infraestrutura precária e ausência de nota no IDEB devido à baixa participação no SAEB. Este perfil de gestor nega, invariavelmente, a noção de “gestor-herói” que o discurso privatista da prefeitura paulistana procura sugerir. Não se trata, afirmam, de uma ação individual, mas de uma rede de corresponsabilidades, ampliando a governança educacional.

Alguns desses gestores destacam sua trajetória vinculada a movimentos sociais e à luta por direitos onde sua prática gestora elegeu a escuta ativa e na mediação entre diferentes atores institucionais e comunitários como modelo adotado. Atuando em um dos territórios de maior vulnerabilidade socioeconômica da cidade, organizam assembleias escolares, rodas de escuta e parcerias com organizações de defesa de direitos. Nesse contexto, a pressão pelo IDEB se mostra não apenas ineficaz para orientar melhorias, mas também contraproducente, pois desconsidera os esforços de construção de um ambiente escolar seguro e participativo em meio a condições adversas.

Vulnerabilidade social e os impactos sobre o desempenho escolar

Os dados preliminares indicam que as escolas com maiores desafios socioeconômicos e estruturais são justamente aquelas que sofrem os efeitos mais nocivos da política de responsabilização individual. O alvo do governo municipal não são apenas os índices, mas os gestores que se recusam a se submeter a uma lógica de medo e intimidação.  Esta afirmação se apoia em diversas pesquisas que o Instituto Cultiva vem realizando com familiares de alunos de redes públicos em várias localidades do país.

Um dos fatores mais agudas e desconsiderados por gestores privatistas como Ricardo Nunes é o adoecimento mental das famílias que impactam diretamente o comportamento e desempenho escolar dos alunos das redes. Em Teresina (PI), mais de 70% das mães pesquisadas apresentaram sintomas de depressão profunda. Em Araraquara (SP), pouco mais de 40% das famílias de alunos apresentavam o mesmo quadro. O quadro de adoecimento mental ganhou contornos de alta gravidade a partir da pandemia do Covid19.

Em Contagem (MG), 80% dos alunos considerados muito apáticos pelos professores da rede municipal de ensino apresentavam eles próprios sinais de depressão ou ansiedade crônica ou de seus responsáveis e familiares.

Em municípios da região metropolitana de Natal (RN), o adoecimento mental é citado por 55% das famílias e 23% dos estudantes que apresentam sinais de ansiedade (39% dos pesquisados) e depressão (15%).

Na quase totalidade das situações de adoecimento mental, apenas 30% são atendidos por profissionais da área de saúde mental.

O quadro de adoecimento psíquico é, muitas vezes, acompanhado por violência cotidiana e sinais de fome, principalmente nas regiões urbanas com rede de proteção social menos estruturada. Este é o cenário encontrado na cidade de São Paulo.

A questão que fica é: qual a culpa do gestor escolar e qual o quinhão de culpa dos prefeitos num cenário de descaso social?

A ânsia do extremismo político nacional em privatizar a gestão escolar indica uma superficialidade técnica e conceitual, que expõe estudantes e professores à mercê de um modelo de governo autoritário e punitivo. Sem apuro e acuidade que políticas públicas exigem, principalmente no 7º país mais desigual do planeta, segundo levantamento da ONU.

Se não tem nenhum fundamento técnico, o que leva o prefeito Ricardo Nunes a insistir no afastamento de gestores escolares?

Em ciência, aprendemos que não devemos enquadrar a realidade numa tese ou hipótese inicial. É a realidade que indica se a hipótese é adequada. O prefeito, porém, força sua ideologia sobre a realidade, transformando políticas públicas em instrumento de coerção.

Se um governante insiste em enquadrar sua ideologia ou tese de qualquer maneira numa realidade que não valida sua crença, sua política deixa de ser pública e passa a ser uma imposição autoritária. O que se vê em São Paulo não é avaliação de desempenho, mas uma operação política de intimidação, humilhação e gaslighting, cujo alvo são os diretores comprometidos com a educação pública.

É o que aprendemos quando diferenciamos avaliar de verificar. Ao verificar, procuramos achar a nossa verdade na realidade. Ao contrário, quando avaliamos, aprendemos a valorizar a realidade, a tentar entender as variáveis que contribuem para que ela seja como se apresenta. Ao avaliar, nos tornamos mais humildes. O contrário disso é um olhar caolho, superficial e desconectado do interesse público e social.

O ataque aos diretores paulistanos é, acima de tudo, político. Ricardo Nunes opta por um modelo de gestão que pune e estigmatiza, em vez de apoiar e fortalecer a educação pública, tratando gestores como bodes expiatórios de falhas estruturais que estão fora de seu controle.

A resistência dos diretores e suas estratégias de gestão comunitária e participativa demonstram que o verdadeiro trabalho educativo depende de liderança comprometida, escuta ativa e construção de redes de solidariedade, não de números ou rankings arbitrários. Ao insistir na lógica punitiva e privatista, a prefeitura não só compromete a rede municipal de ensino, como ameaça o futuro de milhares de estudantes em áreas vulneráveis.

Não se trata apenas de defender profissionais, mas de proteger a educação pública, o direito à aprendizagem e a dignidade das comunidades que dependem dessas escolas. O momento exige reflexão crítica à instrumentalização política da educação em detrimento da vida e do futuro de crianças e adolescentes paulistanos.

Referências

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[1] Todos são membros do Instituto Cultiva. Rudá Ricci é doutor em ciências sociais e presidente deste instituto; Mariana Martins é coordenadora do Observatório da Educação Paulistana; Micaela Guz é coordenadora de cursos, extensão e pesquisa; Carol Pereira e Juliana Meato são subcoordenadoras da área de cursos, extensão e pesquisa do Instituto Cultiva.

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