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RUDÁ RICCI: A esquerda brasileira precisa enfrentar o tema da segurança pública

O tema da segurança pública é um abacaxi para a esquerda brasileira. Alguns afirmam que tem relação com o papel das forças militares que perseguiram e assassinaram militantes de esquerda no passado. Não me parece tão simples. 

Para sair das cordas, a esquerda precisa enfrentar o tema. Destaco três aspectos que me parecem cruciais para dar um passo à frente. 

O primeiro aspecto que gostaria de destacar é a cultura de extrema-direita que envolve todas as forças militares brasileiras. Não se trata de algo novo. Na década de 1930, o então Ministério da Guerra realizou uma pesquisa que indicou que 50% do efetivo da Marinha e 25% do Exército se inclinavam a apoiar o fascismo e o integralismo. 

A esquerda tem imensas dificuldades para lidar com a reversão desta cultura. Interessante que nos anos 1960 havia certa influência da esquerda nas forças militares. Não por outro motivo, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado em 2014, pelo menos 6.591 militares foram perseguidos pelo regime militar que se iniciou com o golpe de 1964.

Durante a gestão do ministro da Defesa, José Viegas Filho (2003-2004), na primeira gestão de Lula como Presidente, houve uma tentativa desastrosa de mudança desta cultura extremista nas FFAA. Viegas criou a Secretaria de Estudos e Cooperação (SEC). A Escola Superior de Guerra (ESG) passou a se subordinar ao novo Secretário de Estudos e Cooperação, o diplomata José Roberto de Almeida Pinto, o que gerou tensão com o Exército, mas a Marinha percebeu uma janela de oportunidade que levaria à mudança da correlação de forças no interior das FFAA.

Contudo, surpreendentemente, a SEC passou a promover palestras na ESG com caráter ultraliberal. Colhi depoimentos que indicaram a aproximação de teorias liberais por esforço de Antonio Jorge Ramalho e, posteriormente, Ivan Simonsen.

Ramalho dirigiu o Departamento de Cooperação do Ministério da Defesa, o Centro de Estudos Brasileiros em Porto Príncipe, Haiti e integrou a Assessoria de Defesa da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. 

Ivan é sobrinho do ex-ministro Mário Henrique Simonsen, foi consultor do Banco Central em 1989 e diretor do FGV-Business de 1992 até 1997, sendo responsável pela criação e formulação dos cursos na área de Finanças Corporativas e Gestão Empresarial. 

O fato é que a guinada ideológica do Exército – de estatizante para ultraliberal – parece ter relação com este esforço de intervenção na sua formação política. O que revela as dificuldades para a esquerda – em especial, o lulismo – em lidar com o tema. A intervenção na formação militar é confusa. 

O segundo tema é mais geral: qual a posição da esquerda a respeito do monopólio do uso da violência legítima pelo Estado, tese cara a Max Weber? As pesquisas recentes indicam que mais que no Brasil e no Rio de Janeiro, os moradores de favelas cariocas estão desesperados com a violência imposta por milícias e facções. Mais de 80% desses brasileiros apoiaram o massacre liderado pelo governo do RJ. 

A esquerda não faz um debate e um discurso claros que pautem o uso de forças militares na imposição da ordem democrática. Fica no ar em que circunstâncias a esquerda acredita ser necessário o seu emprego. Ou seria contra o uso desta força? Sem um discurso claro, continuará perdendo de lavada no embate com a extrema-direita. Ficará à mercê da ladainha de que o “pessoal dos direitos humanos passa a mão na cabeça de bandido”.

Uma terceira questão é o controle popular dos territórios. É evidente que os territórios estão sendo tomados por milícias e facções em várias localidades do país. O tema do controle dos territórios é clássico para a esquerda e tem relação com a estratégia sobre o papel do Estado, sua configuração como sistema associativo com organizações de base, incluindo bairros e estruturas de produção. 

Ora, no Brasil, não temos avanço consistente nesta área. Nem mesmo em políticas sociais. No final do século passado, avançamos com o orçamento participativo e conselhos de gestão pública. E paramos. No México, temos municípios totalmente controlados por indígenas. Algo similar na Bolívia e Venezuela (inscritos como direito constitucional). Aqui, nada. 

O que dizer, então, de proposta de controle territorial em áreas disputadas por milícias e facções? Neste século, a esquerda ficou circunscrita aos esforços eleitorais e, assim, tudo fica associado ao campo institucional. Enquanto governadores extremistas fazem ou ameaçam fazer intervenções armadas e massacres em morros e periferias, o governo federal envia projetos de lei ao Congresso. 

É verdade que a operação que asfixiou parte das finanças do PCC em São Paulo teve a liderança do governo federal. Mas, não ganhou as ruas. Falta uma demonstração cabal que apresente a esquerda como polo que disputa soluções reais com os governadores de extrema-direita. 

Penso que há muitos outros temas relacionados à segurança pública, mas minha intenção é apontar a responsabilidade da esquerda naquilo que não depende de mais ninguém. Temos que abrir um debate franco nas organizações, envolvendo a militância para gerar energia e convencimento.

Sem isso, no próximo ano, a saída será fugir deste tema e tentar deslocar para assuntos que a esquerda já tem acúmulo.