Mais de 75% dos alunos visitados na própria moradia possuem um quadro considerado urgentíssimo. O que isso quer dizer? Apresentam uma ou mais características: sinais de fome, suspeita de abuso, automutilação, indicações de violência ou adoecimento psíquico, ou ausência de acompanhamento escolar em casa.
Esse é o cenário observado pelo Comunidades Educadoras em Araraquara, cidade de 240 mil habitantes do interior de São Paulo. O programa da Cultiva reconhecido internacionalmente, implementado na cidade paulista em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, entra agora em uma fase importantíssima: após realizar um perfil inicial da rede pública local e formar uma rede de proteção, começa a solucionar esses problemas.
“Somos uma junção de especialistas: professores, articuladores, equipe gestora, equipe da Cultiva, educadoras, pedagogas, psicólogas, sociólogas, assistentes sociais… Quando a gente consegue juntar essa força, consegue transformar”, afirma Elora Marques, consultora socioeducacional do Instituto Cultiva.
Cenário preocupante
Os dados que abrem esta reportagem foram coletados em mais de 300 visitas feitas presencialmente a casa de alunos da rede municipal de educação de Araraquara desde novembro. A equipe de articuladoras, formada por professoras, aplica um questionário com quase 100 perguntas às famílias.
“O principal objetivo é entender a realidade, traçar um censo da comunidade escolar da rede pública de Araraquara. Em seguida, solucionamos todos os casos considerados urgentíssimos que, assim como a evasão escolar, têm a ver com a família como um todo”, explica a socióloga.
E essa taxa de 75% dos alunos visitados se enquadrarem como caso urgentíssimo.
“É muito preocupante. É muito preocupante constatar que o adoecimento psíquico é uma das maiores fontes de tudo isso. A realidade social em que a gente se encontra afeta o aprendizado das crianças”, diz Elora Marques.
“A gente escuta muito falar que uma criança é problema, que não quer estudar. Ela não é o problema, o ambiente em que ela vive é o problema, as condições sociais e estruturais são o problema”, complementa.
Fome
Os casos urgentíssimos são organizados em quatro grandes grupos: sinais de violência, sinais de fome, sinais de adoecimento psíquico e ausência de acompanhamento escolar em casa.
Dentro desses grupos, estão características importantes: suspeita de abuso; tentativa de suicídio ou automutilação; queda brusca de desempenho no último semestre; alvo de bullying; alvo de racismo; dificuldade de aprendizagem crônica e apatia.
“A maioria das casas que visitei é composta por mãe solo: ou o pai abandonou ou está preso. Ou, ainda, a avó que cuida porque a mãe também abandonou”.
A autora da frase é Cleide Ferreira, uma das articuladoras. “São famílias grandes, com mais de duas crianças. A mãe se vê perdida, sem orientação e sem saber o que fazer para ajudar os filhos: vivem com a renda de um auxílio público”, afirma.
Mais de 30 crianças visitadas vivem um contexto de fome.
“Tem um caso, por exemplo, que são 10 pessoas na mesma moradia e há racionamento de comida. Os pais têm emprego, mas não é o suficiente e eles fazem esse racionamento: cada pessoa tem que comer uma determinada porção”, relata Elora Marques.
Adoecimento mental
A maior parte dos casos urgentíssimos dizem respeito a falta de acompanhamento escolar em casa e sinais de adoecimento psíquico – na família ou no próprio estudante.
“São sinais de depressão, mas não só isso. Esses sinais psiquícos, normalmente, têm a ver com a falta de dinheiro, com desamparo afetivo, em não conseguir uma ajuda de prontidão – apesar da busca. Muita criança fica sozinha em casa”, explica Elora.
E há, ainda, sinais de violência – física, emocional e sexual. A criança pode não ser a vítima direta da agressão, mas vivencia, observa, por exemplo, a mãe sendo agredida.
“Por mais que a violência não seja com o corpo dela, ela está desprotegida, em um ambiente violento. Isso é um desamparo quanto aos direitos da criança e do adolescente”, diz a consultora socioeducacional da Cultiva.
Foram observadas, ainda, moradias com presença de mofo, sinais de goteira e animais em situação insalubre convivendo com os moradores em um número insuficiente de camas e colchões.
Causa conhecida? Solução à vista
Com os problemas identificados e conhecidos, inicia-se a solução. Toda semana, uma equipe formada por consultoras socioeducacionais, assistentes sociais e psicólogas fazem análises em cima dos relatórios e sugestões de encaminhamentos.
“Fazemos nossas sugestões de encaminhamentos, mas as escolas podem e devem modificá-los. E, assim, as escolas entendem e assumem o programa: é um programa de educação, não basta encaminhar para a saúde ou assistência social e largar o caso”, explica Elora Marques.
Até o fim de maio, foram realizados 165 encaminhamentos interseccionais – ou seja, tanto na área educacional quanto na área de saúde e assistência social. Outros cerca de 50 encaminhamentos foram feitos isoladamente para cada uma das áreas.
Na parte educacional, não se trata de reforço, mas sim de modelos de aprendizagem diferenciados, lúdicos, com metodologias distintas, que possam retomar o processo de aprendizagem da criança – o que Araraquara já possui.
Por um futuro!
“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”.
A frase de Paulo Freire continua sendo o norte em Araraquara do Comunidades Educadoras, assim como foi em todas as regiões do país em que o programa foi implementado.
Conhecer a fundo a realidade de cada um para, assim, poder encontrar as soluções adequadas para cada realidade. Afinal, as crianças de hoje são os adultos de amanhã.
“Nossas crianças merecem! A educação é fundamental. Se essas crianças tiverem uma oportunidade e um olhar mais detalhado para cada caso, vão conseguir ter um futuro melhor”, resume a articuladora e educadora Cleide Ferreira.
Parabéns pela matéria, como sempre você tem surpreendido com o olhar crítico, sensatez, coerência, clareza e domínio.