Milhares de raivosos destilam ódio racista a um rapaz de 22 anos, que se destaca entre milhões por uma habilidade extraordinária.
A distópica cena poderia se tratar de uma arena animalesca da Roma antiga, mas ocorreu em 2023.Uma sociedade em dívida histórica por escravizar dezenas de milhões pela cor de pele ainda está longe de alcançar o básico.
Tudo é repugnante, tudo é emblemático.
O episódio em Valência escancara o que, por vezes, queremos evitar enxergar. No mais emblemático esporte do mundo, na mais emblemática – mesmo que decadente – liga de futebol, envolvendo o clube mais emblemático.
E o desfecho não poderia ser mais emblemático: vítima de racismo disparado por milhares, sem proteção dos homens que fazem e executam as regras, leva um mata-leão e ainda acaba expulso.
É o resumo da sociedade que não consegue – e muitas vezes não quer – superar o racismo estrutural.
Sempre foi assim?
“Sim. No Brasil, por exemplo, o futebol foi trazido por Charles Miller, filho da elite brasileira. E a elite manteve o futebol apenas para a elite o quanto pôde”,
contextualiza Ademir Castellari, sociólogo mestre em Futebol.
No início, o futebol era apenas um esporte amador. O objetivo? Deixar os trabalhadores longe da prática.
Em 1923, o Vasco ganha o campeonato carioca com um elenco recheado de trabalhadores, pobres e… negros! O que a federação fez?
“Incitada pelos demais clubes, obrigou o Vasco a expulsar 12 jogadores sob a alegação de que eram falsos amadores”, diz Castellari.
“Mas o falso amadorismo estava na maioria dos clubes. O diferente é que todos os 12 eram negros”.
O racismo mora na torcida?
Não.
“A gente costuma olhar unicamente para a lógica desse racismo que parte apenas do torcedor para o atleta, quando na verdade o racismo ocorre entre toda a estrutura do futebol”, responde Marcel Tonini, pesquisador sênior do Museu do Futebol, no Pacaembu, São Paulo.
“Isso aconteceu em uma das maiores ligas do mundo, com um dos melhores jogadores da atualidade, com o mundo inteiro vendo. Imagina o que acontece em outros locais que não são exibidos pela televisão no mundo esportivo”,, complementa Ademir Castellari.
Segundo levantamento do Observatório da Discriminação Racial do Futebol, a cada quatro dias, um caso de racismo foi registrado em 2022, no futebol brasileiro.
Foram 90 situações – apenas as registradas.
“O jogador de futebol compreendeu que aquilo que acontece em campo, que ele dizia que deveria morrer em campo, ele já entende que isso é crime, que o racismo é crime, não pode morrer em campo e precisa ser denunciado”, diz Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório, ao Grupo Globo.
Afinal, o que fazer?
“O racismo é uma questão estrutural, está em três dimensões basicamente: economia, ideologia e subjetividade. O racismo é racional porque pega essas três dimensões e são essas três que constroem as relações sociais”, explica o escritor e músico Rubinho Giaquinto.
O estudioso, que integra o coletivo Solidariedade Cidadã, afirma que é necessário um movimento duplo: punição efetiva e educação.
“O racismo é crime aqui no Brasil, mas quantas pessoas você conhece que foi condenada por racismo?”, questiona.
“Além do campo jurídico, precisamos avançar na educação: campanha em escolas, material didático… Exemplo: parar de retratar o continente africano de forma pejorativa. E isso inclui a mídia”, afirma Rubinho.
“Os torcedores têm que ser punidos, os clubes que permitem que isso aconteça têm que ser punidos”, reforça Ademir.
Punição e conscientização
“O problema não é restrito a Brasil, Espanha ou Europa. É um problema mundial com raízes na história. Precisamos de medidas que não sejam apenas punitivas, mas de reeducação dessas pessoas”,
afirma Marcel Tonini, que também integra o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas, da USP.
“Os judeus e ciganos, por exemplo, já eram foco de ataque na Polônia e Rússia – parte do que se chamava de Eurásia. No século 21, o racismo ganhou força, inclusive entre jovens, porque a economia e o emprego entrou em crise. Há uma leitura emocional contra migrantes que estariam ‘roubando’ emprego de nativos”, contextualiza o sociólogo Rudá Ricci.
“Aliás, o conceito de identitarismo surgiu na França, entre jovens, que afirmavam que os nativos tinham prioridade social e no emprego porque tinham identidade com aquela terra e história”, finaliza.