Jacqueline Muniz – UFF
Eu, Jacqueline, tenho sido levada a sentir dor pela expropriação coletiva do meu corpo e a viver uma condenação moral antecipada por um futuro violento e que ainda não aconteceu, mas que é autorizado, toda vez que alguém com poder, prestígio e visibilidade, em especial os homens, ressuscita sua autoridade patriarcal no debate público com o cheque-caução “eu sou contra o aborto, mas….”. Só dizer que é “contra”, uma advertência de superfície em tom de censura, serve para ficar bem em todas as fotos da cruzada moral midiática e para “matar” o debate. Uma cruzada que vende ter o monopólio político-religioso da defesa do valor universal da vida, quando todos nós vivemos e lutamos pelo direito a vida com dignidade e independência, em especial quem é capaz de engravidar! Uma cruzada que inventa, para manter seus arautos como sujeitos superiores e nobres, um grupo inexistente de pessoas que seriam “contra a vida, a favor do aborto”! Estas pessoas, caricaturadas como portadoras de uma humanidade historicamente suspeita e desequilibrada emocionalmente, as mulheres, é claro, justificariam uma permanente tutela do estado com o monopólio masculino para governar sua vida biológica, privada e pública. Seus úteros e ovários devem ter outros donos que violam, mas também cuidam, e principalmente, legislam sobre esta propriedade física e moral. Os homens primeiro, as mulheres depois e no final da fila da democracia viril ameaçada pela cidadania de gênero! Esta hierarquia se repete até na fala solidaria de políticos que se dizem contra a PL do estuprador diante da reação feminina nas ruas?
Simplificar o debate publico ao “contra do bem versus a favor do mal” é um ato deliberado de má fé religiosa porque a serviço da instrumentalização política de um projeto autoritário de poder que manipula nossas crenças e impõe derrotas previas as mulheres, assim, subalternizadas. A conversa vira o que se quer: um papo de homens provedores, protetores e predadores. Cumpre o papel de excluir e/ou reduzir direitos da mulher e reprodutivos. Isto permite a manutenção da desigualdade social e de gênero com as cínicas terapias penais como solução violenta de encerrar a força o debate público e resolver, de forma também violenta, com a criminalização do aborto e a exultação da cultura do estupro. Afinal, o estupro, é uma prova-testemunho da autoridade de gênero: mulher estuprada segue tratada como uma mulher previamente bandida que facilitou e provocou sua violação com seu corpo e alma, fazendo por merecer a violência corretiva sofrida. E, mais, pode se tornar agora uma criminosa, periculosa de nascença, por se recusar germinar a semente dos senhores de sua vida e de sua morte.
Qual menina acorda alegre e chama as coleguinhas para irem juntas brincar de serem estupradas e de fazerem aborto? Qual jovem, querendo curtir sua vida, pede as amigas para irem com ela ali curtirem juntas um estupro divertido seguido de um aborto aventureiro e perigoso? Qual mulher sonha e corre atrás de um futuro com abortos e estupros em seu currículo?
Chega de hipocrisia que assassina meninas e mulheres estupradas e engravidadas. Em sua maioria meninas periféricas e negras. Debater é preciso, pactuar não é tão preciso porque tem que nos incluir, as pessoas que são ou foram capazes de engravidar, as protagonistas deste pacto e que afirmam antes de tudo o direito inalienável a uma vida digna, soberana e segura!! Vamos reabrir a roda para enlarguecer o debate publico sobre violência sexual, seguranca e saude reprodutiva!
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