Como explicar inúmeros casos recentes de assédio envolvendo intelectuais progressistas ou declarações ofensivas de lideranças como Lula?
Por Rudá Ricci*, via Folha de S. Paulo
Não existe esquerda machista ou racista. Se é machista, não é esquerda. A razão é simples: a esquerda se define pela defesa da igualdade social, e o machismo, por sua vez, é estruturado na desigualdade entre gêneros. Assédio, piadas sexistas ou divisão de tarefas com base no sexo não fazem parte do projeto de esquerda — nem deveriam ser relativizados como “erros de percurso”.
Diante disso, como explicar os inúmeros casos recentes de assédio envolvendo intelectuais progressistas? Ou declarações machistas de lideranças como Lula? A explicação não está em meros deslizes, mas na contradição entre discurso e prática. Há quem use o rótulo de esquerda como grife, mas incorpore um comportamento político deformado e incoerente.
O descontrole das pulsões é parte dessa equação. Freud identificou que sublimar o desejo é essencial para a saúde psíquica. Viver em sociedade requer autocontrole e empatia. As redes sociais, no entanto, estimulam o oposto: o culto à liberdade sem limites, à impulsividade, ao individualismo. Esse ambiente favorece a perversão — e a extrema direita o alimenta diariamente. A esquerda precisa enfrentar esse debate de forma direta, com firmeza e sem concessões.
Outro ponto central é a crise do processo civilizatório. A esquerda sempre teve como missão propor uma convivência mais justa e integradora. Mas hoje se vê capturada por uma lógica de celebridades: figuras que buscam popularidade imediata e não liderança com raízes sociais. Como lembra o filósofo Zygmunt Bauman, a celebridade mobiliza, mas é passageira. A liderança é orgânica, exige projeto, coerência e compromisso.
Também vivemos uma crise de virilidade. Com a ascensão das mulheres nas lutas sociais e no mercado de trabalho, muitos homens reagiram tentando reafirmar um papel perdido. Tornaram-se mais conservadores. O fenômeno dos “incels”, jovens misóginos e ressentidos, é um exemplo extremo. Dados recentes mostram: os jovens homens são, em geral, mais conservadores que as mulheres. A esquerda precisa enfrentar esse quadro, sem relativizar os danos.
Trata-se, no fundo, de compreender o poder. Desejar algo e realizá-lo, apesar da oposição, é exercício de poder. E ele pode ser simbólico ou material. O projeto da esquerda sempre foi socializar o poder, ampliar a participação. Mas hoje há uma tendência de culto à personalidade, que reforça a concentração de poder e o descontrole ético. Isso abre espaço para comportamentos abusivos normalizados no interior da própria militância.
O desafio final é distinguir entre ser popular e defender um projeto popular. A busca pela popularidade fácil reduz a política ao nível da conversa de bar. Já um projeto popular exige conflito, debate e coragem para remar contra a maré. A esquerda brasileira já foi capaz disso. Hoje, parece disposta a ceder tudo — até sua identidade.
Por fim, não cabe dizer que apenas mulheres podem liderar o feminismo. Isso seria esvaziar o feminismo como projeto coletivo de igualdade. A esquerda é feminista, independentemente do gênero.
O que existe hoje é uma esquerda que já não é mais esquerda. Personalidades narcisistas, que tudo justificam com “compensações”. Pessoas que talvez já tenham sido de esquerda, mas que hoje atuam sob uma lógica individualista, descolada do projeto igualitário. Cabe à verdadeira esquerda reagir — e não ter medo de dizer seu nome.
*Rudá Ricci é sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em Ciências Sociais. Presidente do Instituto Cultiva. Ex-consultor da ONU. Coordenador do Pacto Educativo Global no Brasil.
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