O Brasil acompanhou nos últimos dias novidades sobre um caso gravíssimo e repugnante ocorrido há mais de três décadas. Entre pitadas de incredulidade e revolta, as conversas pelo país foram tomadas pelo caso Cuca.
Você certamente já sabe: segundo o jornal suíço “Der Bund”, em 1987, Cuca e outros três jogadores protagonizaram um estupro coletivo contra uma menina de 13 anos. Sêmen do hoje ex-técnico do Corinthians foi encontrado na vítima.
Reflexões (necessárias) sobre sociedade, mídia, crime, machismo, futebol, entre outros temas, tomaram os debates. Entre complexas questões, uma se destacou:
Cuca deve, então, receber pena perpétua?
O técnico foi condenado, ainda na década de 1980, a 15 meses de prisão – pena jamais cumprida, mas já prescrita. Ele, portanto, já pagou o que devia?
Conversamos com duas especialistas: uma antropóloga com ênfase em Antropologia Urbana e do Esporte e uma presidente de coletivo de torcida futebolística.
Antes de responder a questão, importante contextualizar o futebol, suas simbologias e a relação histórica com a mulher.
“Quando o futebol é introduzido no Brasil, aparece como um esporte de elite. Nesse primeiro momento, as mulheres acompanhavam os jogos: damas e cavalheiros se arrumavam para assistir a uma partida”.
O autor da fala é Ademir Castellari, mestre em futebol.
“Existe até a crônica de Coelho Netto, na qual ele descreve que as mulheres, em meio ao calor do Rio de Janeiro e a tensão das partidas, tiravam as luvas e as torciam”.
Quando o futebol começou a se popularizar, na década de 1920, a discriminação entrou em campo. “Passou a se instalar uma máxima de que não era ambiente para mulher: era coisa de malandro, vagabundo”, diz Castellari.
Se, nas arquibancadas, elas eram repelidas, dentro do campo eram proibidas. Getúlio Vargas regulamenta a profissão de jogador de futebol, mas veta a participação da mulher em 1941.
“Apenas em 1983, ou seja, 40 anos depois, o futebol feminino é liberado. Mas passa por um longo processo até chegar no fim da década de 2010, quando os clubes são obrigados a ter um time feminino”.
Fora do campo, nas arquibancadas, a mesma luta.
“Na década de 1990, começa a ganhar força a volta das mulheres às arquibancadas. As organizadas começam a recebê-las, mas com a permanência do machismo: não podiam tocar instrumento, manipular bandeira, ser da diretoria”, contextualiza Castellari.
E assim, dentro e fora de campo – e na mídia -, as mulheres travam lutas pelo espaço. Criação de coletivos nas torcidas e presença de comentaristas e narradoras dão força no combate a um ambiente machista.
E o que Cuca tem a ver com isso?
“Se constrói ao redor dele um símbolo. Foi dado a ele todo esse suporte para que ele siga com a vida normalmente – e não como um pessoa ‘normal’ de classe média. Mas como um ídolo, um ídolo midiático, que é venerado e que as pessoas se espelham como exemplo”, diz Mariana Mandelli, mestre em Antropologia Social.
“Isso é muito perigoso no futebol e diz muito sobre qual sociedade queremos ser”, complementa.
A contextualização é fundamental para mostrar que não se trata de uma dívida com a Justiça, mas sim com a sociedade.
De simbologias.
“O futebol movimenta o fanatismo, movimenta paixões. As crianças e as pessoas se espelham nesses valores que a gente projeta em homens que estão em campo, ou no banco”, diz a doutoranda, cuja pesquisa é sobre a forma da mulher torcer.
“E que tipo de sociedade a gente vai ser se aceitar tudo o que aconteceu representado na figura de um homem? Não estamos falando de um crime qualquer”.
O jornal suíço “Der Bund” afirma que um dos jogadores segurou a menina de 13 anos para que os outros três, incluindo Cuca, a estuprassem.
O advogado da menina à época confirmou, ao repórter Adriano Wilkson, do UOL, que a vítima tentou suicídio após o episódio.
“Se o Cuca pretendia ser símbolo, nunca deveria ter cogitado estuprar uma menina de 13 anos. Se ele pretendia que essa mácula não o acompanhasse pelo resto da vida, que não estuprasse ninguém”, afirma a coordenadora do Bloco Tricolor Antifa, Fátima Sanchez.
As especialistas são unânimes: não se trata de uma pena perpétua. Cuca está livre, não só pode trabalhar, como ocupou um dos principais cargos – tanto financeira quanto midiaticamente – do futebol brasileiro por anos.
“Principalmente na sociedade brasileira, em que o futebol é um fato social que congrega tantos valores, tantas emoções, tantas relações, tanta sociabilidade, que tipo de homens devem ocupar esse espaço?”, questiona Mariana Mandelli.