Instituto Cultiva

RUDÁ RICCI: O erro de Ricardo Nunes

O prefeito paulistano Ricardo Nunes cometeu seu maior erro desde que começou a se interessar pela privatização da gestão de creches da capital paulista, quando ainda vereador.

Ao contrário da ação truculenta de Zema e outros governadores e prefeitos que investiram na privatização da gestão escolar pública, Nunes decidiu criar uma aura de fundamentação técnica ao relacionar a privatização ao IDEB, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Este índice foi criado em 2007 e pretende avaliar o fluxo escolar e as médias de desempenho nas avaliações. O cálculo se faz a partir da multiplicação da taxa de aprovação pela média de desempenho dos alunos em Português e Matemática, obtidas no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).

O índice é um erro parcial. Primeiro porque o desenvolvimento humano não ocorre tendo a matemática e a língua materna como fundamentos. Há inúmeros estudos que demonstram, como o do neurologista de Harvard, Howard Gardner, que a inteligência humana se articula a partir de sistemas de decisão independentes, que definem o pensamento lógico, mas também o de autocontrole, o de controle dos movimentos, o de localização espacial, o de relacionamento com outros e até mesmo alguns aspectos da dimensão artística e espiritual. Sem esta trama neurológica, seríamos meros robôs. Porém, o IDEB não pensa em humanos, mas em idealizações de humanos.

Voltemos ao prefeito de São Paulo. Em janeiro deste ano, Ricardo Nunes lançou o primeiro balão de ensaio. Afirmou que avaliava adotar a gestão privada nas escolas com pior nota IDEB. Em determinado momento, citou as 50 escolas municipais com menor índice. Em outro momento, citou 250 escolas.

O Instituto Cultiva, por solicitação do sindicato de gestores das escolas municipais de São Paulo, o SINESP, analisou o percurso deste índice das 50 escolas municipais com pior IDEB na capital paulista e as comparou com as escolas municipais com melhor IDEB. Mariana Martins e Juliana Meato, do Instituto Cultiva, perceberam vários erros na interpretação de Ricardo Nunes.

O primeiro deles é que não há correlação entre o índice observado por uma escola e característica específica de um gestor ou gestão. Ao contrário, uma das variáveis mais consistentes na correlação com a nota do IDEB é o número de estudantes de uma escola.

Gráfico comparativo do IDEB nas escolas municipais de São Paulo

Outras variáveis competem para determinar o IDEB, segundo este primeiro estudo, em especial, o perfil dos alunos e de suas famílias.

Os casos mais gritantes surgiram ao se analisar a proximidade entre escolas municipais com baixo e alto IDEBs. Escolas que estão distantes entre 400 metros e 1 km com notas opostas se diferenciam, por exemplo, pelo perfil familiar de migrantes que pouco compreendem a língua portuguesa. Uma dessas escolas com baixo IDEB possuem 40% de alunos oriundos de Bangladesh ou Paquistão.

Em outra análise envolvendo escolas próximas que apresentavam índices divergentes, a com pior IDEB apresentava uma quantidade expressiva de alunos que necessitavam de acompanhamentos especializados, seja por problemas físicos, seja por dificuldades no desenvolvimento cognitivo.

A privatização da gestão escolar se tornou a ponta de lança da extrema-direita paulista, seguindo os passos dos seus pares ideológicos do Paraná e Minas Gerais, dentre outras ofensivas desta natureza.

Não há nenhum rigor técnico, mas mera convicção.

O erro de Ricardo Nunes foi justamente adotar uma roupagem técnica que o fez derrapar. E a situação piorou. Na manhã do dia 22 de maio, 25 diretores escolares efetivos da rede municipal de São Paulo foram convocados para uma reunião em suas Diretorias Regionais de Ensino (DREs). Durante o encontro, foram informados de que seriam afastados de seus cargos. O argumento, até então, continuava sendo o de correção do baixo IDEB dessas escolas. Contudo, a equipe técnica do Instituto Cultiva percebeu que este fundamento não era realmente empregado na escolha das 25 escolas municipais. O pior IDEB municipal não figurava na lista.

Uma análise mais detalhada revelou que os dois denominadores comuns que envolviam as 25 escolas eram o padrão de gestão comunitário e o perfil de alta vulnerabilidade das famílias dos alunos. Esta questão merece atenção.

Os 25 diretores escolares afastados são reconhecidos pelas comunidades como atuantes e líderes territoriais. Procuram as famílias, lhes garantem segurança – inclusive alimentar -, são participantes das atividades comunitárias. Esta é uma das dimensões da função de gestor escolar. Além da capacidade administrativa e do acompanhamento e fomento pedagógico na sua unidade escolar, o gestor escolar deve assumir o papel de liderança territorial comunitária. Este papel foi preponderante durante a pandemia do COVID19. Os bons gestores articulam equipamentos públicos (UBS, CRAS, Conselhos Tutelares), garantem direitos, envolvem pais no acompanhamento e zelo pelo desenvolvimento dos filhos, garante segurança e equilíbrio emocional. Educar, afinal, é uma relação social, humana, marcada pela interpessoalidade. Recorro, novamente, a um neurologista. Antonio Damásio já demonstrou que sem equilíbrio emocional, não conseguimos grandes avanços no campo cognitivo. Daí a importância desta liderança comunitária por parte dos gestores escolares.

Porém, Ricardo Nunes demonstrou desconhecer tal princípio básico. Na verdade, o confrontou.

A outra variável, das mazelas sociais, é ainda mais gritante. A escola-símbolo deste erro é a EMEF Espaço de Bitita, localizada na região do Canindé. A escola atende 750 estudantes do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA) e metade dos estudantes são negros, 25% refugiados ou imigrantes e 10% vivem em centros de acolhida da região. Antes da pandemia, esta escola era referência na prática da Educação Integral, reconhecida pelos projetos pedagógicos inclusivos. Suas iniciativas levaram esta escola a receber prêmios como o “Criativos da Escola”, “Faz a Diferença” do grupo Globo, “Professor Nota 10” da Fundação Victor Civita, além de integrar as escolas associadas da Unesco. O IDEB desta escola era, então, um dos mais altos da rede municipal paulistana.

No período da pandemia, contudo, o entorno da escola passou a receber uma população de estudantes migrantes e refugiados, além de crianças com deficiência e que vivem em Centros Temporários de Acolhimento (CTA). A realidade social da escola se alterou. As demandas e dificuldades de aprendizagem também.

Porém, Ricardo Nunes decidiu colocar uma venda para esta história e para o contexto social. Resolveu sugerir que o problema com o IDEB é o perfil da gestão escolar.

É necessário confrontar o IDEB

O erro de Ricardo Nunes foi tão grosseiro que logo após anunciar o afastamento dos 25 diretores escolares em função do baixo IDEB, recuou na argumentação. Em 2 de junho, o discurso já era apenas de privatização da gestão, sem citar o IDEB. Na oportunidade, Nunes anunciou a concessão de escolas municipais à iniciativa privada, envolvendo três equipamentos educacionais municipais localizados em Campo Limpo, Pirituba/Jaraguá e Santo Amaro.

Por que o prefeito recuou na pretensa fundamentação técnica para privatizar? Porque está errado.

O IDEB é um índice formulado a partir de uma leitura anglo-saxônica que deu errado onde foi aplicado. A principal entusiasta da aplicação de avaliações externas sobre o desempenho escolar baseada em testes de proficiência em poucas disciplinas, Diane Ravitch, escreveu um livro relatando o fracasso desta iniciativa.

Ravitch é pesquisadora em educação da Universidade de Nova York e entre 1991 e 1993 foi secretária-assistente de educação e conselheira do ministro de educação dos EUA, durante a gestão George Bush. Também colaborou com o governo Clinton, fazendo parte da Junta Nacional de Assessoramento Governamental.

Em seu livro “Vida e Morte do grande sistema escolar americano”, Ravitch apresenta o início dessas avaliações por testes que envolveu iniciativas nas cidades de Nova York, Philadelphia, Chicago, Denver e San Diego.

Seu estudo revela um imenso fracasso. Os estudantes foram treinados para fazer testes, mas não para desenvolver sua inteligência. Em outras palavras, a pesquisadora sugere que tais testes não educam, mas apenas treinam.

Suas sugestões são muito objetivas. Cito algumas delas:

  1. Deixem as decisões sobre as escolas para educadores, não para os políticos ou empresários;
  2. Construa um currículo verdadeiramente nacional que estabeleça o que as crianças em cada série deveriam estar aprendendo;
  3. Encoraje o envolvimento familiar na educação logo a partir dos primeiros anos.

Gestão privatizada busca lucro.

Gestão privatizada busca lucro. E o lucro na privatização das escolas públicas vem da performance do IDEB escolar. Uma mera moeda de troca. Nada relacionada com desenvolvimento humana e educação.

O desenvolvimento humano envolve a dimensão física, a psicossocial e a cognitiva. As gestões privatizadas de escolas municipais realizadas no Brasil não se atém a este fundamento científico. Por este motivo, concentram tudo em motivação e aula de reforço. Mas, o que é aula de reforço? É mera memorização. Você repete uma aula que não surtiu efeito à exaustão. Aplica técnicas e exercícios de memorização e condiciona uma resposta. A resposta não é pensada, apenas memorizada. O aluno pode ir bem num teste, mas fracassará na vida real. Fracassará porque no mundo real, não existem testes e nem a mera memorização dará pistas para agir e atingir seus objetivos. Exigirá mais que memória. Exigirá interpretação, relação entre teoria e prática, avaliação de riscos, emoção e crenças. Humano não toma uma decisão apenas porque memorizou uma resposta. Decide a partir de valores. O Brasil dá exemplos fartos sobre esta dinâmica nos debates políticos, culturais e nas eleições. Mas, Ricardo Nunes insiste em não entender o que é um humano.

O IDEB precisa ser revisto.

O IDEB precisa ser revisto. Talvez, o erro de Ricardo Nunes tenha aberto esta janela de oportunidade. Está na hora de desnaturalizarmos o IDEB. Com a idade e a maturidade, aprendemos que nada é infalível. A vida vai se apresentando muito maior e cheia de mistérios que nossa vã filosofia sugere. Fica ainda mais dramático quando a filosofia que adotamos é absolutamente equivocada.

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