Rudá Ricci
Já citei em muitas lives o livro do ex-reitor do Institut d´Études Politiques de Paris, Sergei Guriev, e do professor de Ciência Política da Universidade da Califórnia, Daniel Treisman, que analisam a metamorfose dos governos extremistas no século XXI cujo título é “Democracia fake: a metamorfose da tirania no século XXI”.
Os autores sustentam que há um novo tipo de governante que atua na franja das democracias que eles denominam de “doctors spin” ou, numa tradução livre, “especialistas em manipulação” (ou distorção).
O conceito, de certa maneira, se aproxima da lógica do Estado de Exceção, que ocorreria nas lacunas legais das democracias para impor leis ou ações governamentais tirânicas, inauguradas recentemente a partir da resposta de Bush ao atentado de 11 de Setembro. Bastava ser suspeito para ser caçado e preso sem contato algum com advogados e familiares, muitas vezes torturados pelo Estado.
Já no caso dos “doctors spin”, que os autores citam como exemplo Lee Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura de 1959 a 1990, mas também Orbán, governante da Hungria e Putin, da Rússia, os atos autoritários são mais seletivos, tópicos e o jogo com a comunicação é mais sútil.
A seguir, vou reproduzir as seis características principais do modelo desses governantes tirânicos que os autores destacam. Começando pela substituição do medo pela imagem de competência. Aqui, ternos bem cortados e um ar de profissionalismo e modernidade substituem fardas militares e ar sisudo. As fotos divulgadas pelas agências de comunicação oficial quase sempre revelam governantes em mesas de trabalho, falas em conferências ou visitas às fábricas e empresas. A intenção é revelar um trabalhador incansável que foca nos investimentos para uma vida próspera. Segundo os autores, “em vez de exigir sangue e sacrifício, eles oferecem conforto e respeito.”
A segunda característica é a dos múltiplos apelos, ao contrário do perfil de tiranos anteriores que pregavam ideologias. Lee Juan Yew gostava de dizer ser pragmático, sem qualquer proximidade com ideologias. Putin teria dito que odeia a palavra ideologia, segundo Brian Taylor, em seu livro “The code of putinism”. Para desconcertar, tais líderes associam práticas e ideários do passado sem grande sentido, numa bricolagem que agrada gregos e troianos. É o caso de Putin, que cita e valoriza o período czarista da grande unidade eslava aos clichês da era soviética salpicados de ultradicionalismo conservador anti-LGBT.
Deriva das duas primeiras características a de afastamento do culto à personalidade, agora substituída pelo de celebridade. As celebridades são cultuadas, é verdade, mas oferecem algo de sua intimidade, incluindo gafes e histrionismo. Se antes havia veneração oficial, agora, a construção do perfil de celebridade se faz nas redes sociais, por agentes privados e de maneira descentralizada, muitas vezes adotando um tom perto do deboche. Governantes aparecem voando em asas-deltas ou montando cavalos sem camisa mas, agora, logo é desvendado que tudo foi cena montada e a situação vira até galhofa. Imagens dos novos tiranos viram estampas de canecas à venda em barracas de rua, como iniciativa de ambulantes que oferecem souvenirs. A masculinidade é motivo de riso e até borrifar a marca de perfume lançado pelo manipulador passa a ser objeto de colecionadores e brincadeiras de jovens debochando do “tiozinho”. O ditador é comentado nas ruas e os autores chegam a comparar com a fase mais popular de Obama.
A quarta característica é a da busca de credibilidade, o que foge completamente da imposição pelo medo. Esses novos governantes autoritários permitem imprensa livre – embora ataquem publicamente as mais críticas – e apostam em blogueiros e influencers para responder ou alterar os temas quentes de uma conjuntura. Até tragédias são exploradas por blogueiros aliciados ou disparos de notas e comentários nas redes sociais. Muitos se utilizam de “trolls” ou mesmo pesquisas manipuladas com resultados previsíveis, denominadas de “push poll”. Os autores citam uma pesquisa encomendada pelo governo da Hungria que apresentava perguntas que induziam às respostas como “há quem pense que os migrantes colocam em risco os empregos e meios de subsistência dos húngaros e queremos saber se você concorda com eles”.
A quinta característica é a de transformar o entretenimento em arma. Fofocas sobre celebridades e adversários se transformam em temas quentes numa espécie de metapolítica (comentar política sem falar diretamente). O ex-presidente Fujimori em 2000, em meio à ofensiva contra grupos oposicionistas, divulgou a informação sobre a filha ilegítima de um dos seus adversários. A explosão de talk shows ácidos forja um ambiente tóxico de comentários rebaixados sobre temas políticos e, muitas vezes, são patrocinados indiretamente por esses governantes.
Finalmente, reinterpretar acontecimentos geram versões rapidamente disseminadas nas redes sociais. Essa modalidade deriva, quase sempre, para as fake news. Não raro, a versão adota tons de exagero e indignação, procurando estimular emoções fortes no público-alvo. O emocionalismo é a tônica para gerar revolta em recém-demitidos de uma fábrica que fechou por fraude, mas que é reinterpretado como resultado da política econômica de um governo. Nem sempre as notícias divulgadas são invenções, mas as interpretações carregam no ataque aos alvos políticos pré-determinados.
Em todos os casos, viceja uma “coerção calibrada” pelos novos governantes. Temos aqui no Brasil alguns protótipos recentes, em especial, governadores que se jogam para angariar o espólio de Jair Bolsonaro.
Não é o caso dos exageros cometidos por jovens parlamentares arrivistas, muito mais agressivos e que comumente ultrapassam as linhas do razoável para poder aparecer. No caso dos “doctors spin”, a sutileza é sua arma, o confronto é indireto e a estampa de competência e celebridade é construída.
Com a vitória da extrema-direita nas eleições europeias deste final-de-semana, teremos possivelmente mais exemplos deste novo tipo de tirania e manipulação política. Nos países nórdicos, mais uma vez, o risco é bem pequeno. Mas, na França, aquela da revolução que destruiu a monarquia, há enormes chances do próximo primeiro-ministro adotar este figurino.
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