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RUDÁ RICCI: A fé como motivação das mobilizações sociais no Brasil

Em 2014, um grupo de WhatsApp recém-criado por mim se encorpou e se transformou num espaço de reflexão sobre a aventuras e desventuras do campo progressista brasileiro. Um grupo que envolve militantes e dirigentes do país todo, de diversos credos e ideários, enfeixados pela defesa dos direitos e do progresso social em nosso país. O grupo leva o nome de “Unidade na Diversidade”.

Nos últimos dias, enveredamos pela reflexão diária de temas que nos cercam e nos instigam, desde a COP30 e a frustração com a Cúpula dos Povos, passando pelas reação dos militares após as condenações pela tentativa de golpe de 8 de janeiro e a proposta de reforma administrativa do governo federal.

Em todas as discussões temáticas, um problema rondou todas nossas discussões: a motivação que leva à mobilização social na direção da afirmação de um poder popular. Esta é uma questão central para a sociologia. Max Weber se debruçou sobre ela e sugeriu que há quatro motivações centrais para a ação social: racional em função de um objetivo comum; racional em função da defesa de um valor; defesa das tradições e costumes; afeto e emoção. Duas motivações racionais e duas mais subjetivas. O mistério está justamente nessas duas últimas. Principalmente no que tange à alma brasileira.

Nas minhas pesquisas sobre movimentos sociais e organizações populares brasileiras (tema de minha dissertação de mestrado, tese de doutorado e livro sobre 2013) sempre me deparo com a motivação pela fé. O povo brasileiro é espiritualizado. Seu pensamento é transmaterial, ou seja, se o material ou econômico é base racional para se manifestar, a permanência ou combustível que o leva a permanecer mobilizado é a fé. Tem a ver com o cristianismo mágico e solidário da cultura nacional.

O elemento mágico, misterioso e inexplicável, move o cotidiano dos brasileiros. Não apenas pelos apelos exagerados das “promessas” e compromissos feitos aos santos ou ex-votos, mas pela crença na graça divina. Brasileiro, já se disse tanto, não é muito racional, não poupa porque acredita que, ao final, tudo acabará bem.

Já a dimensão solidária da cultura nacional tem relação íntima com o mundo comunitário rural. O livro de William Castilho sobre o clero brasileiro trás à tona esta dimensão rural do comunitarismo cristão brasileiro e sugere que a urbanização acelerada do nosso país cria uma polifonia e profusão de mensagens por smartphones que corroem a calma e a contemplação necessárias para quem tem fé. De certa maneira, a Teologia da Prosperidade tem menos de fé e solidariedade e mais de apelo à sobrevivência e felicidade pessoal.

Estou lendo um livreto que é um diálogo do cineasta Martin Scorcese com o padre jesuíta Antonio Spadaro. Conversam sobre a fé. Desconhecia que Scorcese fosse católico. É muito tocante como ele se impacta com a graça (da vida) e com a potência da fé. A leitura é fácil e parece que estou conversando com algum brasileiro numa mesa de boteco, com tempo para falar da vida e rir de si.

Scorcese cita alguém que fala sobre como somos brilhantemente criativos e brilhantemente destrutivos. E como o ser humano é marcado pela mente e alma. Buscamos nos encontrar, nem sempre conscientemente, numa disputa entre Tom e Jerry internos.

Em 2013, este ano emblemático para o Brasil, perguntava sobre o que os líderes das manifestações de junho desejavam para o futuro. A pergunta era racional e a resposta sempre foi evasiva ou mágica. Nunca afirmavam algo realmente nítido ou que se dirigia à mudança das estruturas de poder. Num debate que participei numa universidade mineira, cheguei a ficar exasperado com dois estudantes anarquistas, líderes daquelas mobilizações juninas na capital mineira, que respondiam minha pergunta capital com um desdém impactante. Diziam que eles não decidiriam nada e não tinham nenhum objetivo certo. O futuro seria decidido na caminhada coletiva, sem norte pré-determinado. Cheguei a comentar que isso beirava a irresponsabilidade política e recebi sorrisos debochados em troca.

Quando fui coordenador da Associação Brasileira de Reforma Agrária, o futuro mágico apareceu nas ocupações ocorridas no Pontal do Paranapanema. Cenas impressionantes envolvendo famílias de sem-terra, tendo as mulheres e seus filhos à frente. Numa madrugada escura, um Batalhão de Choque ficou frente a frente com famílias rurais que portavam apenas suas roupas, panelas e pás. Os policiais fortemente armados ficaram petrificados diante de olhares absolutamente seguros de mães que protegiam seus filhos e encaravam o Batalhão. Olho no olho, batendo panelas e pás que criava um barulho assustador. Místico. Esta é a palavra que dirigentes da União Democrática Ruralista (UDR) temiam e que expressaram este temor ao serem entrevistados por uma socióloga carioca.

Os empresários do agronegócio sempre toparam o enfrentamento com trabalhadores rurais rebeldes. Mas não compreendiam a tal mística religiosa que dava força às mães esquálidas que seguravam seus filhos nos braços durante as ocupações de suas terras, olhando no fundo dos olhos dos policiais, tenentes e autoridades locais. Os olhares confirmavam uma certeza mágica, uma proteção invisível, uma dignidade em meio à carência. Os ricos nunca entenderam muito bem como é a dinâmica destes valores da alma que se expressam por uma subjetividade que não se baseia na racionalidade.

Enfim, existe uma dimensão mística e mágica que move os brasileiros e que nem sempre levamos em consideração porque é algo inatingível. Weber dizia que quem não tem um passado que lhe dê segurança, projeta um futuro mágico. É sua escora moral. Como o Brasil é o 7º país mais desigual do mundo, é muito provável que este futuro mágico mova as energias da maioria da população brasileira.

Possivelmente, não são palavras de ordem e dados estatísticos que tirarão os brasileiros de suas residências ou convivências sociais locais. Será algo arrebatador, imaterial, que aponte para um futuro mágico e que dê sentido coletivo à revolta. Algo que somente 2013 e, mais adiante, a extrema-direita souberam acionar. Mas que, nos últimos anos, hibernou.