Em 2018, entre 29 de setembro e 20 de outubro, se espalharam pelo Brasil protestos contra Jair Bolsonaro, conhecidos como Movimento Ele Não ou #EleNão. Naquele momento, as manifestações feministas se confundiram com o processo eleitoral e os resultados não foram como se projetavam no início. Terminaram laconicamente em virtude da reação bolsonarista, envolvendo mulheres conservadoras e evangélicas.
Quando se vincula diretamente movimentos por direitos sociais com processos eleitorais, inevitavelmente o comando passa a ser das candidaturas e partidos políticos. O constrangimento partidário é imenso. Já coordenei campanhas eleitorais e há toda uma tensão diária, com leituras muito agudas das pesquisas contratadas e monitoramento de reações na grande imprensa e redes sociais. A hashtag #EleNão, criada em 12 de setembro de 2018 pelo grupo do Facebook “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” alcançou, em apenas 12 dias, “mais de 1,6 milhão de menções contrárias e a favor do candidato Jair Bolsonaro, no Twitter.
Neste ano de 2025, os protestos não se vincularam às eleições. E ganharam um título forte: Mulheres Vivas.
No levantamento realizado a partir das estimativas e registros realizados pela grande imprensa (como Folha de S.Paulo e O Globo), as manifestações envolveram 21 capitais e dezenas de cidades do interior do país. Não há precisão no número de participantes, mas diversas matérias citam “dezenas de milhares”.
Dados do Monitor do Debate Político da USP e More in Common, no ápice da manifestação, registraram 10,3 mil pessoas às 14 horas de domingo. O UOL afirmou que o ato reuniu “quase 7 vezes mais pessoas que o pró-anistia”.
Em Brasília, O Correio Braziliense registrou 3 mil participantes.
No Rio de Janeiro, veículos como Agência Brasil e Poder360 informaram “milhares de pessoas”, sem número fechado. A descrição sugere adesão de grande porte.
Em Belo Horizonte, a imprensa local apontou a presença de “milhares”, também sem estimativa oficial consolidada.
Em Porto Alegre, a imprensa local destacou que realmente foi um “ato multitudinário”, com volume estimado em milhares, embora sem cálculo técnico divulgado.
Em Recife, coberturas regionais indicaram participação de centenas a milhares, dependendo do momento da marcha.
Se projetarmos uma média de 5 mil participantes nas 21 capitais que realizaram os protestos no domingo, chegamos a pouco mais de 100 mil pessoas. Um número próximo das grandes manifestações realizadas em São Paulo ou Rio de Janeiro.
Em 2018, a concentração em São Paulo organizado pelo movimento Ele Não alcançou 500 mil manifestantes. No Rio de Janeiro, a concentração ocorreu na Cinelândia, e foi divulgado que envolveu mais de 200 mil manifestantes. Em Belo Horizonte, o ato teria reunido 100 mil manifestantes. Em Recife a estimativa foi de 150 mil manifestantes. Em Fortaleza, estimaram entre 20 mil e 50 mil manifestantes. Em Porto Alegre, foram 25 mil no parque da redenção. Em Florianópolis, a Polícia Militar estimou a presença de mais de 15 mil manifestantes. Em Curitiba, estimativas desencontradas registraram entre 50 mil (organizadores) e 5 mil (PM).
A comparação entre 2018 e 2025 não é totalmente correta, dado que vivíamos o ápice dos embates eleitorais na campanha à Presidência da República, ainda no rescaldo do movimento criado pela Operação Lava Jato emoldurada pela prisão de Lula. Contudo, indica o potencial de mobilização do tema.
O potencial é realmente grande. Cerca de 3,7 milhões de mulheres brasileiras viveram um ou mais episódios de violência doméstica nos últimos 12 meses, segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero.
Em 2024, 1.459 mulheres foram vítimas de feminicídios. Em média, cerca de quatro mulheres foram assassinadas por dia naquele ano em contextos de violência doméstica, familiar ou por menosprezo.
Em 2025, Brasil já registrou mais de 1.180 feminicídios e quase 3 mil atendimentos diários pelo Ligue 180, segundo o Ministério das Mulheres.
Um escândalo, uma epidemia de violência descontrolada, uma questão nacional.
As manifestações do último domingo revelaram que pode ter se tratado de uma primeira investida para retomada da denúncia nacional. Pode se transformar numa onda que envolva mais pessoas. Mesmo porque, nas manifestações de domingo, houve chamamento direto à participação dos homens, incluindo vídeos e cards a respeito.
Mas, ainda estamos muito crus para gerar tal onda. Na manifestação em que estive presente, os discursos não foram dirigidos aos transeuntes que andavam num manhã ensolarada de domingo. Falavam para si, para a bolha. Discursos tradicionais da esquerda brasileira. Aliás, muitas ausências de lideranças e partidos de esquerda. Há algo no ar que vem desde o movimento Fora Bolsonaro, que organizou inúmeros protestos em 2021. Em 21 capitais como ocorreu no último domingo. Em 2021, contudo, a organização esteve nas mãos da CUT, CTB, Frente Brasil Popular, Povo sem Medo e MST, além da participação de lideranças do PT, PSTU, Rede, PDT, PSOL, PcdoB, PCB, PV e UP. Apesar dessas grandes organizações à frente, e de terem conseguido articular 600 organizações populares, não conseguiram ir além do slogan “Fora Bolsonaro, Comida no Prato e Vacina do Braço”. As pautas tinham se estilhaçado em uma miríade de demandas corporativas e territoriais.
Este impasse no campo popular ainda mantém resquícios e parece não há uma autoridade política capaz de reatar os laços de confiança mútua.
Por ora, é possível sugerir algumas sugestões de leitura do que ocorreu no domingo, ainda à busca de uma conclusão mais robusta e certeira. Vou me arriscar nesta direção:
- As manifestações envolveram pouca gente, mas não foram insignificantes;
- Demonstrou um potencial de comoção e mobilização que precisa ser trabalhado nas próximas semanas para não ser ultrapassado por outra agenda urgente;
- As redes sociais mobilizaram, mas, mais uma vez, não organizaram. Já se tentou organizar através das redes sociais e a experiência mais avançada que se tem registro foi do Movimento 5 Estrelas da Itália. Aliás, todas tentativas nesta direção foram lideradas pela extrema-direita. Nenhuma significativa no campo da esquerda, a despeito de algumas articulações iniciais, como a que gerou o Podemos, na Espanha.
O tema é urgente e merece toda a energia do campo progressista.
Mas, precisamos amadurecer.
Sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em Ciências Sociais. Presidente do Instituto Cultiva. Ex-consultor da ONU. Coordenador do Pacto Educativo Global no Brasil.