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RUDÁ RICCI: Datafolha revela um país polarizado e confuso

Em primeiro lugar, a pesquisa revela que um único “survey” não indica muita coisa. Mereceria cruzar os dados estatísticos obtidos pelo Datafolha com uma pesquisa qualitativa, onde o objetivo não é saber o padrão de resposta mais frequente, mas as motivações e valores que levaram as pessoas a responderem na quantitativa.

O levantamento Datafolha aponta 40% de brasileiros mais alinhados ao partido de Lula e 34%, ao de Bolsonaro. Apesar de predomínio petista em escala, 35% se dizem de direita e 22% de esquerdo, sugerindo um primeiro conflito ou confusão.

O petismo está concentrado nas mulheres (42%), aposentados (45%), católicos (48%) e entre aqueles que possuem até ensino fundamental (52%). Territorialmente, predomina no Nordeste (49%).

Já o bolsonarismo está concentrado nos homens (37%), empresários (41%), evangélicos (47%) e com renda acima de 10 salários-mínimos (42%). Territorialmente, predomina no Sul (41%).

A situação fica ainda mais complexa quando sabemos pela pesquisa Datafolha que 9% dos que se dizem de esquerda votaram em Bolsonaro e 22% dos que se disseram de direita votaram em Lula em 2022. Repito: 22% dos que se dizem de direita votaram em Lula.

Uma pesquisa qualitativa poderia indicar se essa relação entre autodefinição ideológica e voto em Lula está cristalizada. Por exemplo: não sabemos se o eleitor de Lula avalia que ele é hoje um político de centro ou se é mais preparado que outros ou, ainda, se o medo do crescimento do bolsonarismo o faz votar em Lula.

A grande questão é que a pesquisa Datafolha abre uma hipótese de que a terceira via não tem como prosperar justamente porque parte do eleitorado hipoteticamente cativo desta bloco político não vê no Centrão ou num candidato que se apresenta como centro-direita confiável.

Sem a pesquisa qualitativa, não conseguimos ir muito além.

A autodefinição ideológica no Brasil é bem problemática. Vou lançar mão de outra pesquisa que já citei em outro artigo.

Pedro Henrique Marques publicou um interessante artigo intitulado “Dimensão e Determinantes do Pensamento Ideológico entre os Brasileiros” em que buscava testar a coerência entre autodefinição ideológica dos brasileiros e sua posição sobre temas relacionados à economia, Estado e comportamento. Pedro Henrique baseou-se nos dados da Projeto de Opinião Pública da América Latina de 2017. Oito anos não é pouco tempo. Mas, o que gostaria de destacar deste ensaio é que o autor verificou uma coerência é bem baixa. Brasileiro acha que certos valores e políticas são de uma coloração político-ideológica inversa do que realmente são.

Antes de apresentar a análise, exponho o quadro de conceitos que definem a relação dos entrevistados com programas e princípios da esquerda ou da direita.

A tabela indica alguns dos critérios empregados na análise: papel do Estado, políticas sociais, aborto, relação de gênero, sexualidade.

Nas palavras do autor “para aqueles que se autolocalizaram na esquerda isso significa que alguém que fosse (1) favorável à propriedade estatal, (2) favorável à expansão ou pelo menos manutenção da quantidade de famílias beneficiárias do programa Bolsa Família e que (3) concordasse que o Estado brasileiro devesse implementar políticas firmes para reduzir a desigualdade de renda, foi atribuído o score mais alto na nossa variável de “estruturação ideológica do sistema de crenças”.

No que tange à dimensão econômica, a inconsistência mais forte ficou com os que se autodefiniram à direita: quase 5% deste bloco apresentou respostas incompatíveis com este ideário.

De outro lado, dos 29,1% da população dos autolocalizados à esquerda em 2017, 65% apresentaram mais opiniões compatíveis com o corolário pró-estado e igualitário do que opiniões contraditórias o que representou 18,91% da amostra total dos eleitores. Em outras palavras, 18,81% dos entrevistados apresentaram posições compatíveis com o ideário de esquerda em relação à dimensão econômica.

Ter preferência por algum partido de esquerda está positivamente associado com as chances de estar entre o grupo dos mais consistentes em relação ao programa econômico de esquerda. 

Já em relação aos autolocalizados à direita, estar no nível mais alto de escolaridade e dizer-se muito interessado por política aumentam as chances de se dizer de direita e ao mesmo tempo possuir um conjunto de crenças compatíveis com o ideário de direita no plano econômico.

No que tange à dimensão comportamental, os que se autodefiniram à direita apresentaram, mais uma vez, posições incongruentes com este ideário. Entre os 21,9% daqueles que na amostra se autolocalizaram à direita, 61% apresentam scores negativos na variável de “grau de estruturação ideológica das crenças em relação à dimensão moral”, ou seja, sendo mais liberais nos costumes do que sendo conservadores.

O grupo de entrevistados que se revelou mais consistente ao se autodefinir como esquerda em relação à agenda moral e de valores foi o predominantemente feminino e aqueles com níveis de escolaridade. Além disso, ter simpatia por algum partido (mesmo de centro) aumentava as chances de se dizer de esquerda e estar entre os mais consistentes em relação à dimensão dos valores morais.

Ser homem aumenta as chances de dizer-se de direita e ser conservador.

Somados, os eleitores autolocalizados à esquerda e à direita em 2017 que possuíam sistemas de crenças ideologicamente estruturadas em relação à dimensão econômica mal perfaziam 23% da amostra total da população brasileira. Já em relação à dimensão moral, apenas 26,7% da amostra total apresentou coerência com a autodeclaração ideológica.

Em suma, não há exatamente um discurso coerente e hegemônico do ponto de vista da identidade ideológica em nosso país. Antes, o que ocorre é um mosaico de valores e princípios incoerentes que não se relacionam por completo com a identidade ideológica o que, aparentemente, sugere que esta autoproclamação ideológica é mais afetiva que racional.

As possibilidades de relações afetivas, entretanto, são múltiplas e não foram estabelecidas até aqui por nenhuma pesquisa deste gênero realizada no Brasil. Não sabemos se a empatia se dá por uma celebridade destacada no cenário político, por algum fato ou fenômeno, por solidariedade grupal (que Durkheim denominava de “solidariedade mecânica”) ou outro fator.

Uma situação flutuante e pouco ancorada que pode levar às ações sociais de efeito manada, à manipulação e até mesmo ao reforço de adoção de estilos histriônicos na disputa eleitoral.

Nós, brasileiros, ainda não amadurecemos no que tange à política, a despeito do interesse no tema ter aumentado significativamente na última década.