A pergunta surgiu pela sequência de fugas de bolsonaristas julgados ou investigados pela Polícia Federal e Justiça brasileira.
Não foram poucos. Carla Zambelli (PL-SP), condenada a dez anos de prisão; Eduardo Bolsonaro, investigado por agir contra autoridades brasileiras; Paulo Figueiredo Filho, neto do ex-ditador João Figueiredo, acusado de tentativa de golpe de Estado; Allan dos Santos, alvo de dois inquéritos no STF, com prisão preventiva decretada em 2021 e condenado a 1 ano e 7 meses de detenção por calúnia; Esdras dos Santos, líder do acampamento de bolsonaristas em Belo Horizonte; Oswaldo Eustáquio, preso em 2020 no inquérito das fake news que deixou o Brasil e se transferiu para a Espanha.
Mais recentemente, Flávio Bolsonaro tentou organizar uma manifestação para retomar o tumulto já ocorrido às vésperas do 8 de janeiro. No dia anterior da realização deste tumulto, Jair Bolsonaro violou a tornozeleira eletrônica com um aparelho de soldagem o que sinalizou que também planejava fugir do país.
Não se trata apenas de covardia, mas de uma pulsão incontrolável para confrontar com o judiciário e a polícia judiciária brasileira. Uma pulsão criminosa. Algo desenfreado.
Já se sabia que bolsonarista vai além dos limites. Sempre na ofensiva, parece trucar sem freios para que a derrota pareça apenas momentânea.
Muitas vezes, veio a imagem do filme “O Cavaleiro Negro”, do Monty Python. Numa das cenas mais hilárias do cinema mundial, o Rei Arthur enfrenta o Cavaleiro Negro que o impede de atravessar uma ponte. Segue-se a destruição física do Cavaleiro Negro que perde o braço esquerdo. Não se dando por vencido, o Cavaleiro investe contra o Rei Arthur que lhe retira o braço direito. Mesmo assim, o cavaleiro ainda não admite e passa a chutá-lo, acusando-o de covardia. Em resposta, Arthur corta fora a perna direita do Cavaleiro Negro. Finalmente Arthur arranca a perna esquerda do Cavaleiro, que ficou reduzido a um toco de homem, e atravessa a ponte, tendo ao fundo os gritos do Cavaleiro Negro que o acusa de fugir e ameaça morder-lhe as pernas.
Os bolsonaristas são assim: são destruídos pela realidade, mas continuam ameaçando morder as pernas de quem chegar perto. Este é o caso do deputado Sóstenes Cavalcante, que sequestra a mesa diretora da Câmara de Deputados e ameaça cotidianamente forçar a anistia geral para os terroristas de 8 de janeiro.
Não se cansam nunca.
Wilhelm Reich afirmava que a estrutura da personalidade seria um conjunto de defesas psíquicas e corporais que se formam na infância para lidar com ansiedade e conflitos internos. Em seu conhecido livro “Análise do Caráter, o freudiano marxista sugere que o caráter neurótico se manifesta como um “encouraçamento” ou padrão de resistência. Como uma tartaruga, o neurótico se fecha em relação ao mundo externo. São defesas e resistências pessoais, “racionalizando” a doença para que ela não se apresente como tal. A tal couraça teria como função a proteção contra estímulos sádicos ou libidinais. A tal couraça parece ser um recurso constante dos bolsonaristas, não?
Um outro autor sugere uma diluição do caráter nos tempos atuais. Richard Sennett, em seu livro “A Corrosão do Caráter” descreve como o capitalismo instável dos tempos atuais promove a ausência de compromissos de longo prazo, desfazendo o caráter individual. Caráter, para o autor, seria o conjunto de traços pessoais e valores duráveis que formam a identidade de um indivíduo, tornando-o estável e comprometido com projetos de longo prazo. O bolsonarismo, neste sentido, poderia ser uma exposição sistemática deste processo de desmontagem do caráter enquanto compromisso com uma linha coerente e estável no mundo contemporâneo. Algo que leva à perda de uma narrativa coerente, tendo como único propósito a necessidade de se reinventar constantemente e se adaptar aos desafios de curto prazo.
No Brasil, o psicanalista Paulo Schiller nos presenteia com relatos de experiências clínicas onde o traço de desamor na infância gera personalidades autoritárias e violentas. Em seu livro “A Paixão pela Mentira”, Schiller relata a invasão da privacidade de pais que expõem seus filhos, ainda na infância, à dissolução da fronteira entre as esferas privada e pública da vida. A verdade e a mentira se confundem porque o objetivo de tais pais perversos é o controle da intimidade.
Termino essas breves citações com o livro mais impressionante sobre o tema. Em “Anatomia da Destrutividade Humana”, Erich Fromm disseca como a solidão – lembremos que este século 21 é caracterizado como o da profunda solidão individual em meio às multidões reais e virtuais – aciona o desejo de aventuras e rupturas com os limites sociais vigentes. Ou como as personalidades sádicas aguardam ambientes excitados e transgressores para sair de sua toca e avançar sobre os inúmeros inimigos imaginários.
Enfim, algo do bolsonarismo agrega personalidades doentias, cujo caráter parece instável, lidando com as adversidades da vida como desafios quixotescos. A briga contra os moinhos de vento dos bolsonaristas é o grito do Cavaleiro Negro desafiando o oponente, já vencedor, a oferecer sua perna para levar uma mordida.
Caídos no chão, sem pernas e sem braços, continuam desafiando, gritando, criando vigílias e manifestações para convocar o “Senhor dos Exércitos” a uma Cruzada sem fim, pela sua existência de curto prazo, já que perderam qualquer noção de futuro.
Sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em Ciências Sociais. Presidente do Instituto Cultiva. Ex-consultor da ONU. Coordenador do Pacto Educativo Global no Brasil.