Instituto Cultiva

Homeschooling: Por que método não é direito – e sim um risco à sociedade

Eliminar um processo fundamental para a formação de cidadão e da capacidade de criação e reflexão. Essa é a consequência do projeto inconstitucional de homeschooling – termo em inglês para a prática de ensino domiciliar -, tema em audiência realizada nessa terça-feira (6) na ALMG.

“Jean Piaget fala o seguinte sobre desenvolvimento humano: até uma certa idade, o que os pais falam é considerado como regra absoluta pelas crianças – os pais são como deuses”, inicia Rudá Ricci, presidente da Cultiva e um dos convidados da audiência.

“Entre os 10 e 12 anos, as regras impostas pelos pais vão dando lugar à noção de justiça. Isso só ocorre quando as crianças incrementam o contato social, que ocorre principalmente nas escolas. Piaget alerta, inclusive, que, se há muita doutrinação e chantagem por parte dos pais durante essa fase, a capacidade de criação e reflexão dessa criança some na vida adulta”, complementa o doutor em Ciências Sociais.

A audiência teve como pano de fundo um projeto de lei de 2019 que deseja regulamentar o homeschooling em Minas e tramita atualmente na Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia, da ALMG. O relator, deputado Betão (PT), já deu parecer pela rejeição.


Socialização em xeque

A pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação Infantil da Faculdade de Educação, da UFMG, Maria Cristina Gouveia afirmou que existem dois tipos básicos de socialização: a primária, feita na família, e a secundária, feita em instâncias mais amplas, como as escolas.

“Se você retira da criança a convivência nessas instâncias públicas, você a limita à socialização primária”.

Ela argumentou, ainda, que o ensino não é construído apenas na relação com o material didático, mas sim a partir da relação também com educadores, que têm formação especial para essa mediação, e com os colegas. “A criança precisa do outro para aprender”, concluiu.

Em complemento a essa visão, o professor do Departamento de Educação da PUC Minas Teodoro Zanardi ressaltou que a educação exige que a criança entenda que vive em um mundo complexo, com diferentes sujeitos. E isso, para ele, só é possível em diálogo com as famílias, as religiões e a sociedade. Ou seja, as diferenças estão em todas essas esferas e na contraposição entre elas.

Qualidade de ensino

A qualidade da educação oferecida às crianças e adolescentes também foi debatida. Para a presidenta da Associação das Famílias Educadoras de Minas Gerais (Asfemg), Marina Viana, o poder público não consegue dar respostas educacionais adequadas a todas as famílias, embora dê à maioria delas. Ela citou que algumas crianças têm maior ou menor capacidade de concentração ou facilidade de aprendizado e que só as famílias conhecem suficientemente tais particularidades para atendê-las.

Por outro lado, o professor Teodoro Zanardi apontou que a escola é um ambiente de distribuição de um tipo de conhecimento específico, o científico. Isso não estaria em oposição à educação oferecida pela família, já que esse é um âmbito de distribuição de outros tipos de conhecimento. Assim, é em parceria que famílias e escolas protegem as crianças, não em antagonismo.

O convidado afirmou, então, que entender a família como necessariamente um lugar de virtude, em oposição a locais públicos menos virtuosos, é uma visão marcada pelo “medo do conhecimento”. Para ele, não se pode negar às crianças o acesso a determinado tipo de conhecimento sem cerceá-la dos seus direitos.

O presidente da Comissão Afirmativa e de Inclusão da UFMG, Rodrigo Ednilson de Jesus, concordou com os argumentos do colega e disse que o debate sobre a regulamentação da educação domiciliar no Brasil está associado à discussão de outro projeto, o da Escola sem Partido. Trata-se, então, na visão dele, de blindar as crianças do que é visto como ameaçador, ou seja, blindar de determinados tipos de conhecimento.

Ele lembrou, ainda, que a educação é um projeto de sociedade, não de mercado. Ou seja, ela não deve ser meramente instrumento para o trabalho, mas sim um instrumento para melhor convivência social. “A educação não existe para fomentar a competição entre os indivíduos, para que vença o mais apto, em uma lógica de mercado. Ela deve reforçar as dimensões da solidariedade e de participação”, disse.

Comunidades Educadoras

O Comunidades Educadoras, programa da Cultiva reconhecido internacionalmente, foi citado durante a audiência. O programa se estrutura a partir da visita de educadores às famílias dos estudantes das redes públicas, no intuito de gerar informações sobre condições de vida, tempo de convívio familiar, acesso a bens culturais e sociais, acolhida comunitária e acompanhamento dos responsáveis em relação aos estudos e progressão na carreira estudantil.

A partir desta coleta de informações técnicas, que são registradas em um website dedicado ao programa, são gerados relatórios analíticos para a Secretaria Municipal de Educação. A partir destes relatórios, um Comitê Gestor Integrado composto por três redes de proteção analisa as informações e definem encaminhamentos para cada caso. A formação de redes no território, configurando a Comunidade Educadora, tem o objetivo de articular todos os agentes envolvidos no processo educacional e lideranças comunitárias na promoção de interesses comuns, na efetivação dos direitos sociais e na consolidação de políticas públicas.

“O Comunidades Educadoras confirma, na prática, a importância das escolas não só para as crianças, mas também para toda a estrutura familiar. A formação de uma nação não se dá em casa. Portanto, o homeschooling não é um direito”, conclui Ricci.

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